Para Francisca Navantino, índia Paresí e coordenadora de Formação e Desenvolvimento do Instituto Maiwu, está surgindo uma nova geração de lideranças indígenas, que aliam o saber tradicional com a formação da sociedade ocidental. “É preciso ter formação tradicional, seguindo os ritos e mitos do seu povo, mas também a formação da sociedade ocidental. É preciso ter outras qualidades que vão fazer com que você possa de fato direcionar suas ações para um benefício coletivo”, esclarece.
Nesta entrevista, Francisca aborda esse tema e as necessidades de formação de gestores indígenas para trazer benefícios para sua comunidade e lutar pelos direitos dos povos indígenas.
A demanda para formação de gestores indígenas é crescente?
Francisca Navantino - A demanda existe em todos os setores mas tem uma diferença. Uma coisa é dar uma formação no campo institucional, governamental, que é um tipo de formação focado para atender demandas especificas e pontuais que crescem por conta da população indígena que está aumentando. Aumenta também a necessidade na formação de professores indígenas, tanto na formação inicial como também continuada. Nós temos outra frente de formação que é para atender demandas específicas e locais nas comunidades indígenas, principalmente vindo das organizações indígenas do nosso estado. Nós devemos ter de 200 a 300 organizações indígenas em Mato Grosso, organizações, pequenas, locais, de comunidades, regionais e as três grandes que são a Organização dos Professores Indígenas do Mato Grosso (OPRIMT), Maiwu e a Takinã. Isso além das entidades regionais que atendem grandes territórios como a Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), a Instituto de Pesquisa Etno Ambiental do Xingu (IPEAX) e o Instituto Raoni. Todas essas entidades têm necessidade de formar quadros técnicos para a gestão e administração dessas organizações.
As organizações maiores têm que ajudar nessa capacitação?
FN - O Maiwu tem essa competência de dar essa formação. Outras entidades têm outras competências. Este curso é o primeiro dessa qualidade realizado no Estado de Mato Grosso promovido por uma organização indígena de Mato Grosso. É inédito uma organização indígena com um quadro indígena promover esse tipo de capacitação para indígenas em parceria com entidades governamentais como o Ministério do Meio Ambiente pelo Programa Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI).
Essa necessidade de formação de gestores é uma realidade nova ou já existia mas não existiam projetos para esse fim?
FN - Essa necessidade já existia mas ela nunca tinha sido contemplada, tanto é que nós tivemos mais de 60 interessados em fazer o curso e isto marca uma nova postura do movimento indígena assim como acontece em outros estados do Nordeste e Amazonas onde os indígenas estão mais engajados no movimento e cobram essa demanda aos governos. Então Mato Grosso entra agora nesse mesmo patamar. No Amazonas nós temos a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que agrega todas as organizações regionais para o fortalecimento indígena. O Instituto Maiwu tem competência de atender não só a demanda dela enquanto organização mas também de apoiar iniciativas de outras organizações. Sem contar também que tem a competência também de estar atualizado com seus profissionais indígenas, acompanhando sua formação, não só na educação mas também em outras frentes.
Está havendo uma renovação de lideranças indígenas, considerando que a juventude indígena está cada vez mais ativa nos eventos e em cursos de formação?
FN - A gente percebe que as lideranças têm mudado de mão. As lideranças tradicionais têm feito suas indicações a partir de indígenas com formação. Todas as lideranças têm feito estes indicativos principalmente na Educação. E alguns desses meninos que estão no curso de gestores estão sendo preparados para serem futuras lideranças. E aí a necessidade de qualificação deles dobra. Qualificação não só da formação tradicional que tem que ter, seguindo os ritos e mitos do seu povo, mas também a formação na sociedade ocidental. É preciso ter outras qualidades que vão fazer com que você possa de fato direcionar suas ações para um benefício coletivo. A gente percebe que o curso está dando a oportunidade de os participantes relatarem as experiências deles, mas principalmente apontando as soluções aos problemas que eles têm nas aldeias. O curso tem que ser para isso, melhorar a qualidade de vida dos povos indígenas do Estado.
Se por um lado há uma série de conquistas e a formação de novas lideranças a Funai está se reestruturando e acessar recursos públicos está cada vez mais complexo. A luta pelos direitos indígenas está mais fácil ou mais difícil que há 20 anos, quando a questão indígena começou a ter um tratamento diferenciado?
FN - Hoje está mais difícil para brigar. Aos olhos da sociedade e do governo o problema está resolvido. Se demarcou “X” terras indígenas, está demarcado e pronto. A partir do momento que os direitos indígenas estão na constituição está resolvido. A questão não é essa. A questão é a implementação dos direitos que estão no papel. Antigamente a gente não tinha nada, nem constituição, nem direito nem nada. Hoje nós temos tudo isso no papel. Do ponto de vista burocrático, jurídico está aí. Mas acontece que a grande dificuldade é a implementação de tudo que está posto na constituição. E aí vem o conflito com os não índios e até com o governo. Por exemplo, a gente briga muito com a questão da política pública que nós queremos ser inseridos de forma diferenciada e o governo trabalha com a massa, para todos. Quando chega aos povos indígenas é complicado fazer política pública atendendo tantas realidades diferentes. Quando se iguala tudo você faz um enquadramento dessas ações e aí gera o conflito, principalmente para o indígena que precisa de cada vez mais um conhecimento apurado.
E isso aparece em momentos fundamentais, como nas grandes obras de infra-estrutura, como as barragens e hidrelétricas.
FN - Isso mesmo. Ninguém está analisando as conseqüências de tudo isso para o futuro das gerações. O que a gente percebe é um enquadramento dos povos, da sua vida cultural, enquadrados dentro desses projetos, colocando os índios numa dependência econômica desses projetos. Sair dessa dependência é o grande desafio. Antigamente os povos dependiam apenas de suas economias básicas, da sua roça, do seu pescado, da sua caçada que ele tinha à vontade. Hoje ele não pode mais ter esse privilégio, acabou. Hoje está enquadrado para ter que receber uma cesta básica, para ter que receber dinheiro porque senão passa fome. Esse é o novo enquadramento. O desespero da gente é tentar reverter isso com projetos de sustentabilidade para valorizar aquilo que secularmente os indígenas vinham fazendo e a cada dia que passa está acabando.
Mas por outro lado, várias organizações tem mostrado como fazer as alternativas virarem soluções e temos bons exemplos aqui em Mato Grosso.
FN - No caso do nosso curso o que a gente propõe é exatamente isso. Os cursistas pensarem os saberes econômicos, os saberes de sustentabilidade que eles já tem de uma forma equilibrada, não entrando 100% numa economia capitalista, mas no equilíbrio entre ambos e quem tem que fazer isso é a comunidade. O curso tem que dar esse norteamento para que eles possam de fato encontrar o caminho do equilíbrio econômico no mundo contemporâneo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário